terça-feira, 30 de outubro de 2007

Uma nova Constituição?

“Um povo tem sempre o direito de rever, modificar e mudar a sua Constituição. Uma geração não pode sujeitar às suas leis as gerações seguintes”: Diz o art. 28.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Preâmbulo da Constituição francesa de 1793. Nenhuma Constituição é eterna. Contudo, uma coisa é a realidade fáctica, histórica, outra coisa é a determinação normativa. Historicamente, toda a mudança de Constituição (salvo casos raríssimos, como a Carta Constitucional francesa de 1830 e a Constituição gaulista de 1958) é traumática, é revolucionária, e tem períodos de vazio constitucional. Como lembraria, ainda recentemente, um dos maiores especialistas mundiais, o Prof. Didier Maus, Conselheiro de Estado francês e Presidente da Associação Internacional de Direito Constitucional (Renouveau du droit constitutionnel, Paris, Dalloz, 2007, p. 822 ss.).Isto significa que os povos (ou os activistas que os conduzem) mudam, efectivamente, as constituições, mas no risco da subversão e da revolução, da ilegalidade face às constituições anteriores. Evidentemente, há casos, como o da constituição francesa de 1958, em que se opera uma transição constitucional em que se gera um consenso (contudo com vozes discordantes) sobre o modo de alterar as regras do jogo. O art. 90.º da Constituição de 1946 foi revisto, permitindo novas regras de exercício do poder constituinte: e a nova Constituição seria elaborada na sombra dos gabinetes do Governo, sob inspiração do presidente. Dupla revisão, técnica subversora, pouco democrático, mesmo com o referendo final, que seria afinal um plebiscito a De Gaulle.Seria possível um consenso das forças políticas portuguesas para alterar o art. 288.º, que, além dos pontos concretos intocáveis da Constituição, implica a proibição geral e total de mudar de Constituição dentro da ordem, da legalidade, do regime instituído? De forma alguma tal nos parece possível. A chave do problema é, de momento, o PS, que sempre tem sido um defensores da Constituição, que (na versão presente, mas mesmo muito na original) a ele e ao PPD/PSD fundamentalmente se deve. Imagine-se só o escândalo do PCP e do Bloco de Esquerda perante uma tentativa de mudança de Constituição rasgando os limites da que vigora. Todos os partidos têm interesse em manter o regime. E a vigilância da União Europeia é garante contra aventureirismos anti-democráticos e anti-constitucionais, como seria o caso. Só o CDS votou contra a Constitução, e depois com ela foi convivendo – apesar de críticas pontuais, que nunca puseram em causa o regime. Durante mais de 30 anos, apenas grupos de extrema direita ou para ela caminhando se manifestaram radicalmente contra a Constituição (sendo de presumir que grupos de extrema esquerda lhe sejam também desafectos, mas estes não se preocupam com reivindicações juridistas, que consideram “burguesas” – pelo que desta inimizade constitucional se não ouve falar). Não cremos, também, que a grande autoridade moral de grandes pais-fundadores da Constituição, como os Professores Jorge Miranda, Barbosa de Melo, ou Costa Andrade, e a memória de outros, como Mota Pinto (para só citar alguns), possa permitir que qualquer programa ainda social e democrático se desvincule da defesa da actual Constituição. Só um grande esquecimento das virtualidades auto-regeneradoras deste texto tão aberto e tão generoso poderia levar a atravessar o Rubicão de uma ruptura. Apesar dos proverbiais “brandos costumes” dos Portugueses, tal crise poderia reavivar uma profunda crispação política, que se apaziguou precisamente na paz desta Constituição compromissória. Para quê mudar o fato que nos está bem, e que, em alguns aspectos, nem sequer foi usado suficientemente (como nos direitos sociais)?À pergunta “poderá haver uma nova Constituição?” devemos responder, pois, sim e não. Sim, porque a História não pára, e é impossível à normatividade suster a evolução: benéfica ou nociva. E pode, de facto, mas não de direito, fazer-se inconstitucional e artificialmente uma nova Constituição ainda durante o “prazo de validade” histórico desta: prazo que é indeterminado. Não, porque a nossa ordem jurídica, a normalidade institucional, o normal funcionamento das instituições democráticas que o Presidente da República deve defender e por que deve velar, não permite mudar de Constituição. Apenas rever a presente, nos seus estritos termos.Mudar de Constituição seria mudar de regime. E isso implica, sempre, uma revolução ou uma contra-revolução.

pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 25-10-2007

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