quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O Bastão e as Férias

Todo o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Quantas vezes será preciso repeti-lo? Isto ocorre com todo o tipo de poder, desde o mais ínfimo ao mais vasto. Quando se torna independente de freios e contrapesos, quando deixa de temer o veredicto de um poder superior (até do veredicto das urnas), todo o poder tende a ser excessivo. E o que é mais excessivo em todo o poder é a sua personalização. É o ornar-se de luxos, é o dar-se mordomias, e, logo a seguir, usar os outros, não como fins em si que são, mas como meios. Feri-los na sua dignidade.O poder absoluto não respeita nada nem ninguém. E a todos os que lhe estão próximos tiraniza. Por isso, é que no filme Um Violino no telhado, a prece do rabi era para que o Kzar ficasse muuuuito longe. O poder absoluto é o poder do tirano. Não do tirano no sentido que veio a tomar na Grécia, como governante sem título mas com méritos (como o próprio mítico rei Édipo).A tirania é a maior das violências sobre a humanidade ou dignidade do Homem. E não julguemos que é coisa de outrora. Tende à omnipresença. A tirania decorre, sobretudo, de uma profunda doença da alma que muitos não foram capazes de erradicar. Não há para ela vacina conhecida. E o problema é que o vírus jaz, latente, incubado, em muitos oprimidos e explorados, que só estão à espera da oportunidade para se tornarem o que já são em potência: tiranos. Um dito popular é de enorme sabedoria: “Se queres ver o vilão, mete-lhe a vara na mão!”. A vara do poder, entenda-se. Qualquer poder, mesmo o ínfimo do burocrata no seu guichet.Não sei se as ciências do comportamento se têm debruçado sistematicamente sobre este fenómeno. Pode ser que pertença à natureza humana. Pode ser mesmo que seja parte daquelas pulsões, comuns a homens e animais, que os etólogos enunciaram já, e que nos envergonham nas nossas mais puras e idealistas esperanças: territorialidade, agressividade e outras, apenas seriam compensadas por uma solidariedade feita de instinto gregário, logo, altruísmo egoísta. Haverá ideologia por detrás destas “verdades”? Seja como for, nesse momento de glória da Humanidade em que ainda se amavam ilusões vivas, tinha-se do agonismo na Cidade um dimensão de esperança e de regeneração do Mundo. Essas gerações breves que não precisaram de ser hiper-competitivas para entrar na Universidade e que ainda arranjaram emprego sem “cunhas” e sem angústias excessivas, que acreditaram descontar para uma segurança social que lhe valesse e que pensaram mesmo que a falta de protecção na velhice era coisa ultrapassada de tempos obscuros do passado, essas gerações puderam e podem ainda ter quem não viva sob o tormento do signo da competitividade alucinante, da verdadeira guerra de todos contra todos.Esses tiveram a vida mais facilitada. Mas há sempre quem tenha ideais largos e coração generoso, e recuse ser uma máquina materialista e assassina, de vive e deixa morrer, quando não de mata para subir... Tudo dependerá, decerto, do carinho familiar, do aconchego da vida, até da sorte ao amor... Normalmente, vidas madrastas não fazem cordeirinhos sociais, quando não produzem puros desistentes e, como diz a impiedosa gíria de hoje, perdedores (losers). A sociedade que no mundo contemporâneo estamos a viver é cada dia mais selvagem. Estamos em vias de regredir a partir do estado social. O homem já não é, como diria Hobbes, o lobo do homem. É pior: porque o lobo em princípio não mata os da sua espécie.Obviamente, sempre houve desgraças sociais. As comodidades da técnica e o sono da sociedade mediática iludem-nos hoje da dureza do mundo lá fora, o dos “outros”. Mas estão aí a gritante falta de solidariedade e espírito de sacrifício, o egotismo gigantesco. Até no grupo e na família.Napoleão dizia que na mochila de cada soldadinho haveria, em potência, um bastão de marechal. Salvo os tranquilos (ou defraudados) idealistas de uma geração perdida, parece que doravante há um bastão de tirano na pasta ou na marmita de cada um de nós... E isso é mau. Porque, como numa guerra, para chegar ao bastão, é preciso matar muitos inocentes e perder muitos amigos. Que vertigem dará o bastão? O bastão só interessa para fazer obra, servir. Raros, porém, têm a superioridade de recusar as tentações de qualquer poder, e mais raros os que o usam em benefício comum. Tudo isto são banalidades, paradoxalmente pensadas a propósito de férias: tempo em que, por todo o Mundo, pessoas normais se livram por um curto tempo dos bastões. Vivam as férias!

pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 09-08-2007

1 comentário:

R. da Cunha disse...

Ora viva! Mesmo em férias há sempre um tempinho para pôr as pessoas a sismar, não é?
E para férias, não está mal!
Fiquei com uma dúvida:
no tempo de férias as pessoas normais (seja lá o que isso possa significar) livram-se dos bastões, diz.
Significa isso que as pessoas não-normais (seja lá, também, o que isso quer dizer) não conseguem livrar-se dos bastões e, pelo contrário, aproveitam o tempo de lazer para congeminar novos usos, novas utilidades para os bastões?
Tendo a crer que sim, mas a dúvida permanece.
Boas férias!