A Felicidade é certamente o objectivo de vida da maioria esmagadora das pessoas. Pelo menos nas nossas sociedades modernas, em que até o hedonismo (vício de excesso) é aparatosamente glorificado pela propaganda. Daí que a busca ou demanda da felicidade seja, presumivelmente, a sua tarefa principal, ou, no mínimo, a mais querida. Claro que, noutros tempos e ainda hoje em certos micro-mundos, se preferem as culpabilizações e auto/hetero-punições (vício de defeito): Padece aqui/hoje e serás feliz acolá/amanhã; sê feliz (subjectivamente) na infelicidade (objectiva).O Direito e a Política acompanham os tempos e as vontades. Pelo que a felicidade tem honras de “conceito constitucional global”. Como se sabe, encontra-se originalmente na Declaração da Independência dos EUA: “pursuit of happiness”. De par com os que aí foram considerados direitos inalienáveis, como a vida e a liberdade.No texto original, manuscrito, encontra-se, porém, uma outra fórmula. Em lugar de busca ou demanda da felicidade figurava “busca da propriedade” (“pursuit of property”).Ganhou-se muito com a substituição. E esta génese já nos explica, ao menos simbolicamente, um grande mal-entendido das nossas sociedades. Confunde-se demasiado o desejo de ter com o desejo de se ser feliz. Apesar de o termo “property” poder também eventualmente comportar, nesse inglês político-constitucional, desde John Locke ao menos, um sentido mais vasto que a simples aquisição de bens: remetendo-nos para os direitos.Seja como for, a busca da felicidade anda, realmente, muito confundida. Ter mais dinheiro, maior e melhor televisão (aliás, televisões: pois hoje tende-se a possuir pelo menos uma por cada divisão da casa – ou de cada casa…), melhor e maior carro (e mais carros), melhor e maior casa (ou mais casas, começando com casa de praia, de campo, passando a casa no estrangeiro, etc.), iate (ou melhor iate, ou helicóptero), férias em lugares exóticos, etc., são alguns dos sonhos de consumo generalizados. Há ainda felicidades particulares, umas positivas e outras negativas: o empresário quer lucrar, o asceta meditar, o missionário converter, o autoritário dominar, o revolucionário subverter, o cientista inventar, o professor despertar os espíritos para que aprendam, o juiz justamente julgar, o artista criar.Pessoas comuns contentam-se com muito. E querem ainda amar e ser amadas, ao menos por familiares e almas-gémeas... Todo um enorme conjunto de bens e serviços gira em torno de felicidades e pseudo-felicidades sentimentais (ou sentimentalistas): tendo-as como último ou primeiro móbil, para conquista, preservação e expansão de verdadeiro ou postiço bem-estar emocional e afins. Da moda a produtos literários e fílmicos, de drogas a medicamentos, de diversões banais a paraísos artificiais, é enorme o conjunto de consumos que tem como fito não apenas o ter material, mas um ter menos tangível, ligado a contentamentos pelo menos teoricamente mais profundos.Contudo, como entre nós bem viu Afonso Botelho, no seu Teoria do Amor e da Morte (Lisboa, Fundação Lusíada, 1996) até enorme parte das relações amorosas – que seriam o culminar desse valer intersubjectivo mais alto, sem falarmos de bens mais culturais, esotéricos e místicos - estão contaminadas pela coisificação e pela apropriação proprietaristas.E mesmo as ideias e as ideologias e filosofias se mercantilizam, como realçou, por exemplo, Eduardo Giannetti no seu Mercado das Crenças (São Paulo, Companhia das Letras, 2003). Para não se falar no rico negócio que é o da massificação religiosa, desde a questão das indulgências, e hoje agigantada por seitas que sugam os menos favorecidos prometendo-lhes simultaneamente o reino dos céus e a riqueza.O provérbio diz que o dinheiro não traz felicidade, mas logo outro o completa, explicitando que, apesar disso, “ajuda muito”...Porém, vasta Literatura – espelho e laboratório da nossa humanidade - contradita tal cinismo. Esse homem feliz do conto de Anatole France, cuja camisa curaria o rei, afinal não tinha camisa - proclamando, assim, a felicidade bucólica do despojamento.Almada Negreiros, em Pierrot e Arlequim (1924), concebe uma alegria (próxima da felicidade) feita de procura e não de conquista, precisamente como na fórmula do texto americano. E creio que o príncipe feliz do conto homónimo de Oscar Wilde só o foi verdadeiramente quando, no lixo, reduzido ao seu coração dadivoso, se encontrou com a andorinha morta que o ajudara a fazer o bem, despojando-se ao ponto de se aniquilar.
pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 13-09-2007
2 comentários:
à 4ª DIMENSÃO
obrigada por partilhar aqui no blog este texto.
Cumps
Os pais da democracia americana comungavam de um idealismo realista (poderá ser?). John Locke seria de idêntica colheita.
Os americanos de hoje comungam de outras crenças, a cheirar a petróleo (não todos?, concedo). Anatole France é, hoje, ao que julgo, desconhecido.
Há valores não-materiais e quem os procure e queira possuir? Pois sim, mas vão ficando cada vez mais isolados e mais indefesos contra o materialismo sempre impositivo.
Mais um belo artigo do "nosso" Paulo Ferreira da Cunha.
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