Não se pode falar de crise do Direito sem empreender a sua crítica. Crise e crítica são vectores intelectuais geminados. Deveríamos reler, desde logo, o nosso Miguel Baptista Pereira.Para além ou atrás das mini-crises do Direito que a comunicação social diuturnamente nos relata, com várias peripécias e fait-divers, esconde-se uma crise jurídica mais profunda. A nossa Justiça não será jamais melhor com operações cosméticas, remendos legislativos e afins. O problema da Justiça é um problema de paradigma. De espírito. De formação. De sentido. O Direito é ainda muito instrumento de poder(es) e não caminho para a Justiça. A formação jurídica esquece demasiado o essencial e visa em excesso formar tecnocratas sem alma. Cada vez mais se sente a necessidade de que, ao ainda muito imperante direito autoritário (e de potestas mais que auctoritas), venha a suceder um novo Direito Fraterno. A expansão avassaladora dos Direitos do Homem constitui já um indício que o velho “direito bizantino” está em séria crise. Há uma crise de legitimação do Direito velho. E dela não vai o Direito velho jamais recuperar. É preciso um Direito Novo. Com um novo ideal de Justiça. Justiça que curiosamente desapareceu, literalmente, das preocupações dos positivistas legalistas e dos pseudo-jusnaturalistas, e, acima de tudo dos tecnocratas eficientistas. E por isso o Direito é sentido mais e mais como coisa alheia às pessoas, aos seus valores, aos seus sentimentos. Mas o Direito não pode continuar a ser cão-de-guarda das desigualdades injustas, na mera defesa das sebes bem eriçadas de propriedade sem razão, os choros e os risos bem repartidos (lembrando um belo texto de Agostinho da Silva). Felizmente, há países em que o coro sisudo e engravatado do direito autoritário é quebrado por vozes de liberdade, de reflexão, de auto-reflexão, de crítica, de formação integral.E há quem esteja em Portugal atento a estes problemas. Só para dar um exemplo recente: significativa delegação do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (5 investigadores) marcou presença, na semana passada, na “Critical Legal Conference”, no Birkbeck College da Universidade de Londres.A delegação do IJI animou duas mesas redondas: Constitutional Utopia, com relevo para uma constituição utópica, agora traduzida para inglês, a Constituição da República da Lísia; e Constitutional Space, em que se enfatizou a tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade, no Direito e suas implicações interdisciplinares (simbólicas, artísticas e outras). E da Fraternidade se passa ao “Direito Fraterno”. Preparação para outros voos e publicações que estão já em curso.O campo teórico do Direito Fraterno é particularmente solidário do direito altruísta, do direito humanista e humanístico, do direito souple, e até, com as devidas distâncias e diferenças, do neoconstitucionalismo e dos Direitos do Homem tout court, entre outros. Há uns sete anos, lançámos a ideia de um “direito social”; e depois de outras tentativas (“pessoal-social”, “humanista”), cremos ser este o grande nome, o que verdadeiramente espelha o “quid”. Porque “direito social” (assim como outros, e em especial os híbridos) era pouco significativo, ainda opaco, e podia ser ambíguo, para marcar a mudança de paradigma, depois do direito “objectivo” e “subjectivo”. Só a Fraternidade tem a dimensão pessoal e social que importa fazer florescer.O Direito velho e autoritário, marcado pelo paradigma subjectivista, encara “o outro” excessivamente como contratante, oponente, inimigo, estrangeiro, e até – no crime, por exemplo – como “monstro” (tal se diz muito frequentemente dos criminosos ou pseudo-criminosos julgados na praça pública). A ideia de agente jurídico cooperador, irmão ou irmã, deverá substituir este Direito, sempre atacante porque sempre na defensiva.Esta doutrina não está isolada. Se os estudos jurídicos críticos, como vimos agora em Londres, falam muito mais em Derrida, Lacan, Foucault, Kant e Hegel que nos matutos autores jurídicos das escolas do elogio mútuo, a bandeira do Direito Fraterno está já arvorada em Roma com o catedrático Eligio Resta e em Brasília com o Ministro do Supremo Carlos Ayres de Britto.Contradição nacional: queremos ser muito alinhados com o estrangeiro, copiamos Bolonhas como bons alunos, mas quando seremos capazes de compreender o Direito acima da dura lex sed lex de catarpácios de campanário?
pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 20-09-2007
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