Alguém disse que o importante não é ser-se Ministro, é tê-lo sido. Próxima desta afirmação (que um dia comentarei) está esta outra tese, que parece ganhar cada vez mais veracidade, em tempos de geral tibieza e submissão a poderes instituídos, quaisquer que sejam, e à magna ditadura do politicamente correcto: a Liberdade – a começar pela liberdade de expressão do mais profundo e próprio pensamento – não estará tanto nos políticos na ribalta como nos que por lá passaram, e experimentam agora as delícias de uma certa “irresponsabilidade” (no melhor sentido: no de não “deverem” nem “temerem”). A tendência para dizer o que pretensamente “se deve”, e fazer a figura que de nós se espera, é enorme. Ainda estudante da Faculdade, fui algumas vezes entrevistado, à conta de actividades europeístas. E dei comigo a dizer exactamente o que os entrevistadores esperavam que dissesse. Foi preciso crescer para passar a dizer o que pensava, e poderia constituir espanto – e até indignação - dos outros. Uma das primeiras vezes em que senti a pressão do lugar-comum, foi na Polónia, no Congresso Mundial da Juventude e dos Estudantes, em 1976. Como não houvesse tradutor de português para um congressista angolano que só falava a língua de Camões, estando eu na mesa da presidência não tive dificuldade em oferecer os meus préstimos de tradutor improvisado. Subi à tribuna. O angolano, militante do MPLA, fazia o seu discurso por longas tiradas, rajadas de palavras de ordem, e eu vi-me obrigado a tomar apontamentos que depois traduzia, dali mesmo do púlpito do imponente palácio da cultura de Varsóvia. Terminado o recado, dei comigo só, no palco, ainda com um bom naco de prosa para traduzir. O que diligentemente fiz. Nesse momento, entra a televisão húngara, que acaba por presenciar uma enorme, compassada, sonoríssima trovoada de palmas – que obviamente se dirigia ao orador ausente, e não a mim. Passei, pois, involuntariamente, pela estrela do Congresso…E logo, ao descer das escadas da tribuna, fui apanhado pelos jornalistas. Levaram-me para uma sala ao lado, e rodeado de altas colunas intimidatórias, tive o interrogatório da praxe. Talvez um instinto de sobrevivência me tenha influenciado, também. Corriam boatos que uma qualquer intervenção sobre presos políticos feita pelos jovens do Partido Liberal alemão lhes havia valido alguns incómodos. Mais uma razão, assim, para falar da paz, da cooperação, da détente e do progresso social… Banalidades. O politicamente correcto nas relações ocidente-leste da época…Depois de tamanha sensaboria, o jornalista confessou: não estivemos a gravar até agora. Foi um treino. Faça o favor de dizer exactamente o que disse, que agora vamos entrar em directo. Esteve magnífico: parabéns! Jamais saberei se algum dia apareci na televisão húngara. Sei é que a comunicação social, sobretudo a mais imediata, nos pode fazer de bobos. É assim que se devem saudar as atitudes daqueles que, em Portugal como lá fora (há o exemplo de um ex-chanceler alemão!) não se vergam à ditadura mediática, e assumem a sua dignidade. Curioso, porém, é que os que isto fazem não estão normalmente no activo ou na ribalta, pelo menos não estão no auge das suas carreiras políticas. Isso lhes dá distanciamento: a fama tolda o entendimento, e ao mesmo tempo submete à opinião, à massa, à popularidade. São mais que discutíveis os ditos “critérios editoriais” ou “jornalísticos” de muitos órgãos, eles também vítimas do politicamente correcto e da ditadura das audiências. Baixando sempre o nível, como sublinhou o grande jornalista Bernard Pivot, até ao que uma “doméstica de 40 anos” presumivelmente poderia gostar. Este critério leva a uma total inversão de valores e prioridades de interesse público: a morte do filósofo Agostinho da Silva nada valeu comparada com a de um corredor de automóveis; vindos no mesmo comboio, Madame Curie chegou anonimamente a Paris, enquanto Maurice Chevallier era saudado em ombros. Sendo a televisão e a Internet os principais educadores (ou deseducadores) hoje, é de arrepiar a inversão da ordem de valores que podem inculcar. Portanto, todos os que contribuírem para denunciar a falta de cultura, de senso, de gosto, de sentido das prioridades e dos valores na comunicação social merecem um vibrante e entusiástico aplauso. Sejam quem forem. E mesmo que o dar com a porta na cara fosse o seu último acto político, ou de visibilidade. São precisos muitos murros na mesa e portas na cara para que alguns aprendam as maneiras e as precedências. Há diferenças, há distâncias, há valores.
pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 04-10-2007
1 comentário:
Não sendo, como é (?) sabido entendido na matéria, tenho para mim que só é importante o que passa nas TVs (mais numas que noutras), que obedecem a critérios editoriais discutíveis (quanto vende a notícia ou o programa?). E só é verdadeiro e indesmentível aquilo que os "sábios" encartados peroram do seu púlpito ou da sua coluna "daquele" jornal. O resto é omitido ou remetido para as páginas (pares) interiores dos jornais ou dos telejornais. E, no fundo, o que passa é a primeira página ou a cara do comentador. Este é um assunto que bem mereceria uma discussão alargada, com intervenientes conhecedores do 'metier'.
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