Depois de ler o monumental romance Guerra e Paz, de Tolstoi, António Alçada Baptista ficaria metaforicamente “sem coragem” de escrever um telegrama. Creio que o diz na sua Peregrinação Interior. Depois de vermos o sólido volume Introdução ao Pensamento Contemporâneo, coordenado pelo Prof. Doutor Fernando dos Santos Neves, podemos fazer uma de duas: ou desistir, derrotados ante tamanho portento de saber, ou deleitarmo-nos e enriquecermo-nos com a sua leitura e meditação.Poderá haver algo de muito mais importante, no domínio da cultura, que o pensamento contemporâneo? Devemos meter mãos à obra e ler. Não digo de fio a pavio, mas ler com interesse e perdendo-nos pelas páginas...como que a uma Enciclopédia, que o é afinal.Permita-se-nos, contudo, um reparo liminar. Não é anti-constitucional, esta démarche, porque não parte do Estado, esta benemérita publicação. Infelizmente, este resolveu atar-se as mãos, não querendo nem desejando poder, segundo o art. 43.º, 2, “programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. E assim, nesta abstenção, poderá deixar até as instituições públicas à mercê do proselistimo dos particulares, mesmo os mais sectários? Não é assunto para hoje. Mas o certo é que, com esta iniciativa, a sociedade civil – neste caso uma Universidade - está a fazer um trabalho muito meritório, que deveria ser acarinhado pelo Estado (a FCT apoia a iniciativa, e louvavelmente: esperemos que não a critiquem por anticonstitucional): formar as novas gerações para o seu ambiente mental, para o pensamento contemporâneo. Tal é mesmo uma disciplina que deveria ser obrigatória em todos os cursos superiores. Não para doutrinar (esconjuremos o fantasma), mas, precisamente, para esclarecer e melhor permitir aos cidadãos de hoje orientarem-se na existência. Porque o pensamento contemporâneo não é uma cartilha de uma seita, mas um grande concerto (por vezes dissonante e desconcertante) de muitas vozes que nem sempre cantam em coro e em cânone. Mas é o do nosso tempo, e ainda bem que é assim variado. Vemos, ouvimos e lemos: não pdemos ignorar, como diz o poema de Sophia. Pensamento plural, democrático, adulto e audaz (sapere aude) que atingiu a maioridade kantiana (e pós-kantiana), agente (interventivo, que é praxis) e irónico, auto-irónico e até lúdico. A tradição chinesa amaldiçoava: “que vivas numa época interessante”. Pois nós assumimos e reclamamos para nós essa maldição – queremos viver um tempo interessante, rico em pensamento e em acção. E queremos viver como pensamos e pensar como vivemos, como recorda o Prof. Doutor José Adelino Maltez.Para isso contribuíu a nova ruptura epistémica fundamental, de que fala o próprio coordenador (porque é questão fulcral, de mudança de paradigma). Essa ruptura que permite – inter alia - que a esta ultra-pós-modernidade não faça acepção de pessoas nem de coisas na consideração dos sujeitos e objectos da Cultura. O que permite uma nova concepção de objecto de arte, mas também uma nova e muito mais plural forma de encarar o que seja credível e aceitável como fonte na História (remetendo assim para a memória, para a história social, para a história das pessoas pouco importantes, para a história das lágrimas, do rosto, dos sentimentos, do inferno ou do paraíso ou do purgatório – das nossas ideias sobre eles). Ou do que seja admissível como tópico jurídico, até bibliográfico em Direito: com abertura ao jornalístico, artístico, literário: e daí as áreas de Direito e Literatura, Direito e Arte, etc.Os novos cânones de um pensamento que desconfia de alguns cânones podem começar a esboçar-se. Creio que a ideia de clássico e canónico terá ainda muito futuro, e precisamente julgo que este livro convoca (descontando o co-autor que vos fala) alguns clássicos do pensamento contemporâneo em Portugal. Perto de quase todos. A lista deveria ser aqui citada na íntegra, e assim ninguém poderia negar que é uma obra de peso, não pela gramagem do papel, que é fino (como convém a uma bíblia – conjunto de livros), nas suas quase 1250 páginas, mas pelo nível dos participantes. Não há espaço, porém, e aqui fica o meu mea culpa, porque os nomes falariam muito mais eloquentemente que eu.Reparo final: num tempo em que na Cultura e na Universidade a força gravitacional da má qualidade impele para baixo, como advertiu já Adorno, eis um vector que eleva, para a qualidade. O que conflui eleva-se, como dizia Teilhard de Chardin.
pfc
in "O Primeiro de Janeiro" de 22-11-2007
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