Decorreu há pouco em São Paulo, numa brilhante noite de óscares, a entrega dos prémios Jabuti de 2007. Foi na belíssima Sala São Paulo, onde esteve tout le beau monde cultural, literário e editorial paulista, e a que não faltaria o Cônsul de Portugal. Fica-se impressionado ao ver a craveira excepcional dos contemplados: este ano, Ferreira Gullar e os autores da Enciclopédia Latino-Americana ganharam a grande final. Em anos anteriores, foram contemplados com a bela e simbólica estatueta da tartaruga tenaz, nomes como Moacyr Scliar, Rachel de Queiroz, Chico (e Sérgio) Buarque, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Erico Veríssimo, Florestan Fernandes, Rachel de Queiroz, Afonso Arinos de Melo Franco, João Ubaldo Ribeiro, Adélia Prado, Mário Quintana, Vinicius de Morais, Nelson Rodrigues, Celso Furtado, etc. A lista foi feita sem qualquer ordem e esquecendo muitos...Mas o primeiro grande galardoado, e que a meu ver dará uma marca ao prémio, foi Jorge Amado, com o seu Gabriela, Cravo e Canela, em 1959. É a ele que desejo homenagear, recordando o livro e a telenovela, de cor… Gabriela é a estória de Ilhéus no ano dos prodígios de 1925. Ilhéus, a “Princesinha do Sul”, capital da Costa do Cacau, era uma pacata e ajardinada cidade baiana governada por “coronéis”, onde florescia a virtude pública cultivada pelo preconceito, e a hipócrita descrição do vício privado. Até a principal oposição política era devedora do poder estabelecido. Porém, nesse ano das maravilhas de 1925, tudo vai mudar. O cacau enriquecera a cidade, e atrás do dinheiro vem a mudança das cabeças e dos costumes. Por isso Salazar nos queria pobrezinhos.Os desejos da oposição não colaboracionista e a ambição do jovem exportador, Raimundo (Mundinho) Falcão confluem em projectos para o porto e em vozearia do reviralho no novo jornal da terra. Um coronel assassina, segundo velha “lei” e tradição, sua mulher e o amante, um jovem dentista. Mas se nos funerais quase não se vê vivalma, ainda imperando o preconceito, já um pouco mais tarde, numa romagem ao túmulo do assassinado, o povo muda de opinião e acorre em massa. Nacib, um sírio vindo em criança para o Brasil, personagem tragicómico e pícaro, cultiva boas relações com todos os partidos no bar de que é dono, de nome evocativo: o Vesúvio. E toma-se de amores por Gabriela, uma retirante de uma sensualidade sem malícia e sorriso luminoso que empregara como cozinheira. Será naturalmente traído, porque traição não era sequer concebível por essa beleza selvagem. E o galã e sedutor de turno, Tonico Bastos (filho do patriarca da terra, e que se afirma, curiosamente “liberal-conservador” no seu tango na série televisiva respectiva) sairá da estória ainda mais ridículo que o marido enganado.Mais importante que o idílio do sírio e da mulata (que o autor envolve de doce lirismo) Gabriela é o retrato de uma cidade num período de transição. Com todos os seus caracteres sociais e políticos: desde as prostitutas e as meninas com casa posta pelos coronéis – mas uma delas, Glorinha, irá rebelar-se e namorar o tímido professor - , ao velho patriarca sabido, raposa matreira, o coronel Ramiro, temido por quase todos. Paulo Gracindo faz um papelão na telenovela... com aquele charuto sapiente de ditador tropical, saboreando os vícios dos homens. Passando por uma Malvina que se apaixona por um engenheiro tíbio, encontrando assim saída para a sua vida num grito do Ipiranga pessoal que a leva ir a viver sozinha em São Paulo (onde trabalhará e estudará), renegada pelo pai coronel.Tempo que vemos desfilar diante de nós, e que se vai acelerando. O fim do “antigo regime”, e o começo da modernidade. Não será preciso sequer chegar às eleições para a mutação política. Primeiro vem a mudança social, e das mentalidades. E essa é a determinante. O coronel Ramiro morre placidamente durante o sono, e logo os seus sucessores oferecem o poder a Mundinho, a troco apenas de que lhes poupe e aos amigos as cabeças e as sinecuras. Sic transit...E Mundinho aceita. Na telenovela, acaba tudo em beija-mão, com um oposicionista feito coronel. Mas se no plano político pode ter tudo ficado muito na mesma, a verdade é que Glória e o professor não serão espancados pelo traído coronel respectivo, e pela primeira vez na história de Ilhéus seria condenado pelo júri o outro coronel que assassinara esposa e amante. Muito mudara, afinal, nesse ano de 1925.Todos estes anos passados desde que este livro ganhou o Jabuti, continua viva e actual a sua mensagem. E todos os anos podem ser annus mirabilis.
pfc
in "O Primeiro de Janeiro" de 15-11-2007
in "O Primeiro de Janeiro" de 15-11-2007
1 comentário:
Só Paulo F. da Cunha seria capaz de nos contar, de modo tão breve, quanto fiel, o enredo da "histórica" novela "Gabriela", (baseada na obra de Jorge Amado "Gabriela, Cravo e Canela"), cuja leitura se recomenda; aliás, toda a obra do Autor se recomenda.
Nota para os mais novos - Esta foi a primeira novela exibida em Portugal, ainda a preto e branco, e parava o país à hora da sua transmissão (depois do telejornal).
Uns anos mais tarde foi retransmitida, agora a cores.
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