quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A Constituição Aberta e os seus inimigos II

O cidadão comum, para quem a Constituição não é obstáculo a grandes empresas ou excessivos poderes, que não tem e a que não aspira, nem nada o incomoda por ser demofílica e democrática, só causando pena - isso sim - por sempre ter sido pouco cumprida no seu generoso programa social, questionar-se-á:Mudar de Constituição valeria a pena? Quem lucraria? A quem, realmente, incomoda a actual Constituição? Por que razão? Pela Liberdade? Pelo Pluralismo? Pelo Parlamentarismo racionalizado e bem sucedido? Pelo controlo da constitucionalidade? Ou pela fiscalização desta por um Tribunal Constitucional (TC) nem corporativo nem partidarizado, mas que tem sabido julgar acima das “origens” ideológicas dos seus membros e dos ventos das modas e das agendas políticas? Pelos direitos sociais, económicos e culturais e pelos novos direitos? Por todas e cada uma dessas coisas? Por ser, afinal, a grande barreira à pura força e à pura arbitrariedade? E como seria uma Constituição diferente, hoje? Belo exercício a empreender, mas utopicamente.Não se diga que se pretende só uma Constituição “limpa” de “ideologia”. Limpar o texto constitucional de “ideologia” já se fez até o limite possível, em sucessivas revisões constitucionais. Por isso alguns pretendem uma nova, completamente “inócua”, mas que jamais o seria: Limpar de vez a “ideologia” do Estado Social e do Parlamentarismo racionalizado bem sucedido numa Constituição equivale a injectar-lhe neoliberalismo anarco-capitalista, teologia do mercado, e presidencialismo: todos ideológicos.Outro alvo anti-constitucional de ataques à Constituição é o TC. Naturalmente.A crença de que um juiz não especializado (pretensamente “puro”: coisa que não existe) poderia bem tratar do controlo da constitucionalidade e das pesadas demais tarefas judicatórias (sobre questões partidárias, eleitorais, etc.) cometidas ao TC, hoje, não auguraria nada de benéfico quanto aos resultados de uma tal hipotética transferência de competências.Num tempo de tanta e tão crescente (e até especiosa) especialização na sociedade em geral, e no mundo científico, técnico e empresarial, cuja excelência tanto (em exagero) se quer transpor para todos os domínios da vida, essa diluição de competências parece um contra-senso, e um pernicioso e retrógrado recuo, até “civilizacional”.Não haverá o secreto desejo de, afinal, desconstitucionalizar a Constituição, ao confiá-la a magistrados não constitucionalistas?Nisso os revisionistas podem surpreender-se. Temos muitas dúvidas de que juízes de Direito pudessem realmente vir a satisfazer tal eventual desiderato. É que os juristas e os juízes muito em especial, por decidirem do que é o Direito, em última instância, são verdadeiros devotos da Lei e da Justiça. E apesar da não especialização, quem se atreveria a julgar contra a Constituição, querendo manter-se no culto da constitucionalidade, forma superior de legalidade? Quem a si se renegaria? Até quando imperava o Conselho da Revolução, este quase sempre seguia as posições dos juristas da Comissão Constitucional. Novo drama de Beckett? My lord, I beg you do not do this!’. Desconstitucionalizar a Constituição por via de juízes inócuos é causa perdida. Porque não os há nunca. Qualquer juíz com espírito jurídico (será certamente difícil encontrar um que o não tenha), se investido de funções constitucionais, assumirá a veste de constitucionalista. Só o não faria um simples comissário político, não um vero Magistrado. Se se quiser desconstitucionalizar a Constituição, dever-se-á alterar a composição do TC (injustamente atacado por ser político), e nele proibir a inclusão de juristas, tout court. Porque todos os juristas, mesmo não juízes de carreira, são perigosos “amigos da lei”, e, logo, da Constituição. Não dando garantias de a não cumprirem com a importância que ela tem: supremacia geral a todo o demais Direito. E o nosso TC é, como lembra o Prof. Doutor Gomes Canotilho, um reines Juristengericht, um “puro tribunal de juristas”, “guardião da Constituição” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 681 e 683). Assim, cumpre e defende a Constituição, o que nem sempre agrada a todos... E tem sido elogiado por alguns dos maiores juristas de todo o Mundo. A nossa Constituição é justo motivo de orgulho nacional, e o TC também. Só cá é que parece não se (querer) saber.

(A Constituição Aberta e os seus Inimigos I )

pfc
in "O Primeiro de Janeiro" de 06-12-2007

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