quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Gerações: identidade e conflito

As gerações são problema de cultura e de cidadania. Somos uns dos outros contemporâneos, mas nem todos pertencemos à mesma geração. Quantas pessoas não dizem “no meu tempo!”. Ora esse tempo ucrónico, de suspensão do tempo, é o tempo de cada geração. E contudo é um “tempo comum” para os que não pertencem a essa geração. Pelos anos 60 e 70 do século XX, falava-se muito do conflito ou fosso de gerações, generation gap. Aludia-se a isso, certamente, por ser então, talvez mais que nunca, pela primeira vez, um problema, até escândalo. Mas desde que os hippies romperam com os seus pais, em crenças e em estilo de vida, parece que a cisão veio para ficar, e de tal forma que já nem muito nela se fala, aceitando-se como natural. Os mais velhos sistematicamente desculpam os mais novos com a circunstância simples, e formal, da idade, associada ao seu particular tempo. Interiorizamos, assim, a ideia de geração. Há um progresso. Já no Egipto Antigo se deplorava a decadência das novas gerações, o desnorte dos jovens. Mas apenas para deplorar a corrupção dos costumes e lamentos afins. Hoje, o homem maduro compreende o jovem lembrando-se que já o foi. Ganhámos em consciência histórica. Contudo, essa predisposição para compreender e perdoar, aceitar mesmo, todas as mudanças, se é muito benéfica na perspectiva da tolerância, pode fazer perigar a necessária dialéctica intergeracional, tornando o salutar despique e desafio dos mais novos aos mais velhos num ritual sem sentido, ou até podendo pôr em risco a tradição de uma geração se opor à anterior. Por outro lado, as gerações mais velhas, como que embotadas, lembrando-se dos exemplos literários de enquistamento geracional e não querendo fazer a mesma figura também não se defendem nos seus “valores” e estilo próprios, abrindo cedo demais as portas da cidadela mal avistam os novos ao longe, e prescindido do seu dever de preservar alguma coisa do seu património próprio. Outra manifestação da debilidade das gerações mais velhas é o terem-se convertido aos modos dos jovens, havendo anciãos e anciãs que não apenas importam as suas ideias (o que hoje é cada vez mais difícil, mas eles tentam), os seus comportamentos, as suas características. Querer ser eternamente jovem é sonho antigo. Mas um perverso génio da lâmpada, em vez de dar o elixir da eterna juventude, forneceu o seu fantasma: a poção da ilusão da eterna juventude. E aí temos todo o sistema de diferenciação simbólica intergeracional abalado, confundido. Porque uma geração não é nunca igual à que a precedeu e à que lhe sucede.Cada uma das diversas gerações acaba por ter alguma coloração dentro de si comum, certo ar de família, a partilha de determinados modos e modas. A elite, produtora e consumidora da alta cultura, normalmente dá o lamiré para a sucessiva imitação, por degraus ou ondas socialmente descendentes – como assinalou Gabriel de Tarde n’As Leis da Imitação. Há excepções de imitação do socialmente inferior pelo superior (como teria sido o caso da valsa e do tango, que nasceram em ambiente social zero e foram depois imitados pelos mais abastados), mas são casos excepcionais. E assim, com dificuldade, com o tempo, e por ondas concêntricas, vai-se propagando um gosto, um estilo de época, veiculado por revistas, exposições, em que movimentos artísticos e literários marcam sinais superiores de identificação, nem sempre reproduzidos e compreendidos pelo homem comum. De qualquer forma, a par da alta cultura, outros sinais são uniformizadores, como, v.g., os determinados pela técnica, ou pela moda do vestir, que não afina necessariamente (fenómeno de classe e mentalidade) pelas passerelles. Tecnologia, vestuário, e ideias correntes (hoje muito ditadas pelos media) formam constelações de determinantes epocais.A relação dos indivíduos com estes movimentos e dados de facto que o transcendem é complexa. Pode ser consumidor, espectador ou “paisagem”, mais ou menos apático, ou crítico.Contudo, se virmos o fenómeno cultural geracional na perspectiva mais interessante, que é a do movimento, e até da vanguarda, e se incluirmos em cada grupo geracional não apenas os verdadeiros criadores, mas alguns níveis de influenciados, por assim dizer o público (nos fenómenos de identificação propiciados pela música as tribos são reconhecíveis), teremos não, evidentemente, uma totalidade de pessoas de uma faixa etária, mas já suficiente massa dita crítica. Por mais acrítica que seja, na realidade. Essa massa é que constitui cada verdadeira “geração”.

pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 21-02-2008

1 comentário:

Anónimo disse...

Ora aqui está um artigo bem interessante. Pena que a esta hora não possa dizer alguma coisa sobre ele.