Estamos cansados de algumas litanias moralistas, não estamos? Por exemplo: é lugar-comum já deplorar-se o egoísmo do nosso tempo. O facto de estarmos cansados de brados e imprecações não retira nada à realidade criticada, mas criticada mecanicamente, sem intervenção e aparentemente sem esperança. Quanto ao egoísmo, então, haveria que clamar-se menos, e fazer-se alguma coisa contra ele. Mas o quê? Esse é decerto o problema que os moralistas experimentam. Não sabem o que fazer. Talvez uma reprimenda aos fedelhos que berram e pulam exigindo aos pais mundos e fundos diante das montras ou das prateleiras dos hipermercados. Talvez outro tipo de reprimenda para crianças maiores que fazem birra e pior por brinquedos mais caros. Não sei, realmente. As reprimendas valerão de alguma coisa? Tenho dúvidas sobre esse tipo de medicina social curativa. Preferiria a preventiva. Há doutos pedagogos aconselhando muitas vezes estratégias que exigiriam um pós-doutoramento para cada progenitor. Ou simplesmente passividades sábias com o nome de condescendências, ou outros, mais sofisticados.Lembro-me sempre daquele proverbial vencido da vida familiar que um dia teria, derrotado, feito a seguinte declaração para a acta da história: “Antes de casar, tinha 6 teorias e nenhum filho. Depois, tive 6 filhos e nenhuma teoria”. Por mim, não sei como se educa. Acredito que alguns filhos nascem educados, e outros não... Pura sorte. Mas como educar a sociedade (que atrevimento!) para o altruísmo, para a solidariedade, e não para o egoísmo que vai de vento em popa, corroendo-a?Irei apenas tentar recordar algo do que foi a auto-educação de alguns nesse sentido. Que mais não sei. Creio mesmo que muito depende da vontade de se ser colaborante cidadão, prestável e solidário. E mesmo assim... O modelo social de um cidadão com atenção aos outros é, evidentemente, o preciso contrário do modelo actual, que incensa o sucesso, o qual se mede por dinheiro, fama, poder. É evidente que para atingir aqueles três bens tão escassos, o caminho mais evidente é o do serial killer social. Não há fácil escada para esses três objectivos. Daí, o ter-se que eliminar os adversários sem condescendência, sem dó nem piedade. Pelo contrário, se a meta é ser-se bom cidadão e boa pessoa, a estrada é larguíssima. E quase não há concorrência.Para o alcançar bastaria o treino em meia dúzia de coisas:
1. Ao contrário de alguns gurus da auto-ajuda, primeiro estima pelos outros. Observá-los. Estar atento a eles. Ao que querem e ao que se lhes possa amavelmente dar-lhes, fazer-lhes, por vezes com um gesto simples. Estar atento mais ainda ao que precisam mesmo. Que se pode por vezes facilmente conseguir. Como um sorriso, um encorajamento, uma flor podem mudar a vida de alguém! Uma palavra, até.
2. Não estar na frente dos outros. Não lhes tapar o sol nem o caminho. Dar-lhes a vez com um sorriso, mesmo quando o lugar é nosso. E que entendam (sem agressão) que lhes demos a vez, para que a possam dar a outros, por seu turno.
3. Dizer “obrigado” sempre; “bom dia”, sempre. E “desculpe”, sempre que pareça que estão com mais razão do que nós. Na dúvida, pedir desculpa. Jamais, porém, pedir desculpa a um ditador. Mesmo que nos pressione. Perante os ditadores, não devemos ser simpáticos senão por sarcasmo. Mas é perigoso: podem não entender.
4. Tentar decidir pelo bem geral e promover decisões nesse sentido. Treinar-se na votação e na aceitação da regra da maioria, compreendendo que ela nem sempre tem razão e que, infelizmente, também ela pode ser ditatorial, se não respeitar as minorias. Ser capaz de sacrificar o interesse pessoal ao colectivo; levar isso a sério. Regozijar-se com o bem geral. E ser capaz de não olhar ao interesse particularista face ao bem geral. Mesmo se alguns próximos ficarem indignados... com a Justiça.
5. Cumprir a lei, obviamente, e ir mais longe que ela, que foi feita em geral para “os maus”. Se ela te mandar ir uma légua, deves acompanhá-la duas. Mas jamais conceder um milímetro a mais a um mando cretino, tirano, troca-tintas, traidor, medíocre. Ou qualquer indivíduo que se creia – pior ainda que se afirme – “o Estado” ou “a Lei”.
6. Falar a língua dos outros. Falar de futebol (ou ópera) mesmo se se não souber. Por consideração, para manter um diálogo. Somos todos humanos, e tudo o que interessa a uns deve preocupar os demais. Falta ainda muito, mas tal já bastaria para a salubridade convivencial do planeta. Alternativa: sprays de oxytocina em doses industriais.
pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 24-07-2008
1 comentário:
O "treino de meia dázia de coisas" é demasiado puxado para quem não está preparado para iniciar tal treino (e sem apetência para). Depois, onde os "preparadores"? São muito escassos. Acresce que o tempo é curto e há muitos outros assuntos que reclamam a nossa atenção. Sem solução, o problema? Talvez não, mas eu não a conheço. Convoque-se quem o possa e queira fazer.
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