ESTADO
CONTRA SOCIEDADE
Do
Protagonismo numa Democracia Crepuscular
Sempre nos
preocupámos mais com a Sociedade que com o Estado. Embora o Estado conforme (e
por vezes deforme) a Sociedade, se dela não for a justa expressão política e
administrativa. O Estado não "somos nós todos", como demagogica e
superficialmente se diz: o Estado, no sentido que aqui nos importa, é como o
inferno de Sartre: "são os outros" (Huis clos). No caso, os que
mandam.
Já Santo Agostinho
(Civitas Dei) perguntava: "Ignorada (ou desprezada) a Justiça, que são os
Reinos senão grandes bandos de ladrões?". "E o que são bandos de ladrões senão
pequenos reinos?" Notemos: Sem Justiça.
Sabemos que o Poder
tem sempre alguma coisa de diabólico, e que dificilmente se será ao mesmo tempo
santo e poderoso. O caso de Tomás Moro, santo e político, só se entende porque
Henrique VIII acabaria por o decapitar.
Assim, fazer uma
vida à margem do poder, honesta e bonita, é um belo ideal. Se o poder no-la
deixar levar. E isso está cada vez mais difícil. Não nos deixam "cuidar do nosso
jardim". Disse Julien Freund: podemos não escolher os nossos inimigos, que eles
escolhem-nos a nós.
E a sociedade que
poderia estar calmamente a simplesmente viver, enquanto os príncipes
deste mundo se digladiam entre si, em vez disso está a ser muito atacada e,
pior, influenciada por um vazio ético, qual buraco negro de valores, tudo
aborvendo para o antivalor.
Esta ordem
ultraliberal (em boa medida internacional) da rapina e do esbulho, da falta de
palavra, do poder pelo poder, e do dinheiro acima de todo o poder, da ideia fixa
na conquista, preservação e expansão do mando, por todos os meios, está a
ser-nos fatal. Sobretudo porque os esteios da ordem normal, constitucional e
democrática, mais ainda, os pilares da simples sociedade sã, parecem
desarticulados, adormecidos, eventualmente mortos.
A mentalidade
arrivista e sem freio não tem sido contrabalançada por famílias
com esclarecimento e raízes - cada vez mais famílias não têm nem tempo, nem
formação, e vivem na angústia da falta de pão; não está a ser travada por uma
Escola e professores prestigiados (socialmente e pelos alunos) e capazes de
educar além de debitar programas - os docentes têm sido humilhados publicamente
e esbulhados em vencimento e direitos, e vergados à mais inimaginável, absurda,
nociva e totalitária das burocracias no setor; não se vê ponderada e criticada
por uma comunicação social totalmente isenta, esclarecida e educadora também -
já muitos cidadãos desligaram desse mundo, que é um outro mundo.
Esta desarticulação
ou demissão das pedras vivas está a gerar graves consequências para a sociedade
civil, para a própria compleição espiritual da Pátria.
Está a incentivar
gerações não só de autistas, vagamundos e desesperados como de pessoas sem
valores, sem respeito, sem freios. Está a semear ignorância e ignorância muito
petulante, que ignora que tudo ignora.
Os jovens não têm
futuro, e os mais velhos suspiram por novos Salazares. Confundem a perversão
democrática (na verdade muito pouco democrática) com a verdadeira Democracia, e
assim, por ignorância, prefeririam a ditadura, porque ao menos se sabia com o
que se contava, havia ordem e paz nas ruas. É o velho complexo autoritário que
ressurge. E a democracia foi incapaz de educar as pessoas, velhas e novas, para
os seus próprios méritos. E ao verem no que está a dar, a pedagogia do exemplo
gera frutos perigosos na opinião pública.
Concomitantemente
está-se a estender a passadeira rubra e a dar palco, dinheiro e poder a muitos
que os não merecem (nem de perto nem de longe), e os obtêm pelas razões mais
estranhas, fortuitas ou injustas. Está, finalmente, a criar-se uma raça
assanhada e perigosíssima de "parvenus" de faca nos dentes ou na liga, prontos a
tudo vender e a tudo sacrificar. Já venderam em pequeninos a alma ao diabo por
um prato de lentilhas de fama ou poder, ou uns cobres vis para mal esbanjarem em
ostentação. Mas como não sabem o que são contratos e ignoram o "pacta sunt
servanda", continuam quotidianamente a mercadejar a alma, a vendê-la e a
revendê-la, a quem lha queira ir comprando.
Não falamos de
políticos, falamos da sociedade, do micro-. Da esperteza saloia agora muito
batizada até de títulos que nada passam a valer, sôfrega da sede de brilhar por
quem nada significa. E brilha da luz artificial e emprestada da escola do elogio
mútuo e dos fazedores de opinião que disso também vivam.
Quando será que os
que valem alguma coisa deixarão de beijar a mão dos que são mero bluff e
só têm a altura do pedestal pintado para que, atropelando todos, acabaram por se
guindar?
Anões, não aos
ombros de gigantes (como dizia São Bernardo), mas sob os cadáveres das suas
vítimas...
A sociedade está
muito doente, não é só o Estado. Urge um Estado constitucional, são, que dê o
exemplo. Porém, enquanto isso não acontece, é preciso que a sociedade civil vá
encontrando formas de resistir, e de contrariar a anomia profunda para que
resvala.
Paulo
Ferreira da Cunha
1 comentário:
Por mim, não diria anomia, mas paralisia total da denominada sociedade civil, manietada que está pelo medo do amanhã, anunciado pior do que o dia de hoje. Que nos falha? Vamos esperar por um dom Sebastião?
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