sexta-feira, 20 de julho de 2007

Elogio de Harry Potter

A série Harry Potter está cada vez melhor. No cinema, claro. Que em livro só falta o desfecho, que ainda se aguarda oficialmente. Não sei se os fãs mais dedicados terão ido ver um final ou pretenso final que um “fundamentalista” teria subtraído à editora e colocado na Internet, em luta sem quartel contra a bruxaria sacrílega. Eu não fui ver. O final será sempre, e só, o oficial. É como nas cartas anónimas: jamais se devem sequer abrir, e muito menos ler.Só se consegue lidar com a sedução da magia, com a própria crença descrente na magia, com natural superioridade racional, e uma enorme e acolhedora condescendência. Faiscantes excomunhões e mão militar apenas adiam o problema. A magia é poderosa. Está inscrita no nosso imaginário. E se for servida pelo fingimento do poeta (do escritor, da Literatura), mais ainda cativa, até porque não compromete a convicção. O livro de Paul Veyne Acreditavam os Gregos nos seus mitos? é revelador. Há tantas coisas em que acreditamos e não acreditamos... Há quem seja materialista em teoria e crente na prática (ou será vice-versa?). Provavelmente, serão os nossos vários cérebros sedimentares a trabalhar. O cérebro de réptil acha enorme graça à magia... O de primata preferirá certos reality shows... O de Homem deleita-se com cultura... E o de anjo (mensageiro), para quem o tenha, com espiritualidades... Sempre me atraiu a ideia Harry Potter. Porque efabular uma sociedade de bruxos, não idealizada, mas precisamente com os mesmos problemas que os homens comuns têm, é, no fundo, uma grande metáfora da diversidade humana e da própria mutação do Homem, com o progresso técnico. Andar em vassouras não é assim uma impossibilidade tão afastada...O mundo dos feiticeiros de Harry Potter está tão dividido entre o bem e o mal como o nosso. E começa a matizar-se cada vez mais. Fazendo-nos explicitamente compreender que até no herói principal (sobretudo nele) as forças positivas e negativas se digladiam. As personagens são, assim, complexas. Como nós.Descontando o feérico dos efeitos especiais, para satisfazer a sede geral de espectáculo, neste Harry Potter e a Ordem da Fénix vamo-nos aproximando da luta decisiva. Mas, enquanto isso, há pormenores a que devemos atentar: interessantes uns, deliciosos outros...O julgamento a que, quase no princípio do filme, Potter é submetido injustamente lembra os tribunais gregos, com um júri de assembleia. A forma sinistramente facciosa como o juiz conduz os trabalhos é revoltante.Mas mais revoltante ainda é a ditadura da medíocre inquisidora educativa que acaba por se instalar na escola de bruxaria, expedindo decretos arbitrários e opressivos, expulsando professores e torturando os alunos.Creio que todo o público suspira de alívio quando dois estudantes resolvem fazer justiça (não vamos dizer como, mas é um belo espectáculo). Alívio e gáudio. A petulância daquela ínfima criatura, que quer impor um manualzinho fascista aos estudantes, e pretende afinal que apenas aprendam teoria (como se a um bruxo – ou a qualquer pessoa - a teoria pudesse bastar), dando créditos aos colaboracionistas e peando os mais brilhantes, é decisiva para a construção de uma nova personagem clássica. O grande problema é que a autora não criou as suas personagens a partir do nada...O happy ending (pelo menos provisório) conforta-nos. O grande problema da realidade e da história por contraposição à ficção é que não dominamos o final. Contudo, há que trabalhar para um bom final.E isso faz-se também aprendendo as grandes lições de virtude de Harry Potter, tão caluniado por quem não o lê ou não o entende. E rindo, rindo, rindo muito, de personagens caricatas, como a grande inquisidora educativa (acho que era esse o nome no filme), do país dos bruxos, que confessa não gostar de crianças. E por falar em educação. Como seria excelente que o modelo das nossas escolas fosse aquela justa e livre escola de bruxos... Não falo do estilo da casa, dos uniformes ingleses, que são soberbos. Mas da variedade dos mestres. Como é belo ver a pedagogia livre em acção! E como é esclarecedor, no filme, a formatação que a inquisidora impõe, a bem da mediocridade e do controlo...E enquanto o fundamentalismo não entende a aludida estratificação mental, garantia de tolerância, na escola dos bruxos, e em casa de bruxos comemora-se o Natal. Sem complexos... Com todo o sincretismo que é preciso neste mundo confuso e belo.... Perdão, naquele mundo confuso e belo. E os reis magos não são magos?

pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 19-07-2007

Sem comentários: