terça-feira, 22 de julho de 2008

A arma de Sherazade

Há sinais contraditórios na vida das estórias. Os tempos tanto parecem serem-lhes desfavoráveis ao extremo como delas excessivamente dependentes. Por um lado, tudo indica que as nossas sociedades contemporâneas estão a ficar desprovidas de argamassa narrativa comum capaz de cimentar a nossa vida como comunidade. Nas escolas, onde estão os clássicos? A própria noção de clássico e de “cânone” tem sido posta em causa. Mesmo quando se ensina algo que nos ligue ao património cultural colectivo que fez a linguagem comum de séculos, tal é cada vez mais feito de forma souple, e, sem dúvida, pouco eficaz. Falta a esse ensino, quiçá sobretudo a esse estudo, a profundidade, a sistematicidade, e em alguns casos a obrigatoriedade como que tal vinha sendo feito, de há muito. Acresce que a rotação das estórias infantis e juvenis, escritas ou televisionadas, deixa pouco lugar para uma comunidade de lembranças e de mitos. Mitos que são essenciais para a alimentação do imaginário e a construção do discurso inter-comunicativo. Mesmo poetas têm de os ir buscar à enciclopédia, quando eles lhes estavam na alma. Quem hoje reconhece Jasão e o velo de Oiro, Medusa ou Sísifo? Resiste decerto Hércules, em parte devido a desenho animado. Mas desafio os mais eruditos a recitarem o rol dos seus trabalhos. Sem dúvida há quem fale de Édipo. Mas quiçá pouco para além do seu complexo, salvo os especialistas. Quem terá sido esse “complexado”? E sua “gémea” Electra? Já não se exigiriam as mitologias chinesas, ou da Índia, nem as africanas ou americanas. Nem sequer as europeias mais distantes de nós. Posto que a figura trágica de um deus como Odin e a sinistra imagem de um Loki nos pudessem ajudar a formar belos tipos-ideais. Não se pense que as narrativas e figuras religiosas estão em situação melhor. Apesar de recordadas nas liturgias, deixaram em grande medida de ser identificadas (e menos ainda utilizadas) pelas novas gerações, mesmo as que se dizem crentes e praticantes. Enigma de recepção por que se deverão certamente preocupar não apenas os responsáveis confessionais, como todos os interessados na preservação do património simbólico.Dentro em breve, se não mesmo já agora, escassíssimos serão os que entenderão o que se quererá dizer com “pobre como Job”, estar como Daniel na cova dos leões, ou querermos salvar-nos do dilúvio, como Noé. Não se exigiria que se soubesse da flecha de Nemrod na torre de Babel, nem do pão e do vinho de Melchisedech, da ressurreição da filha de Jairo, ou do “renascimento” de Nicodemos. Quando deixou de haver uma estória canónica do Capuchinho Vermelho, ou da Cigarra e da Formiga, que se pode esperar? É claro que não recuso as virtualidades pedagógico-cívicas e de tolerância social de um lobo que, em vez de devorar avó e neta, com elas se presta a conviver, em “família alternativa”. Se tal fosse da natureza do lobo, ou se a cultura fosse capaz de se sobrepor a uma tal natureza. Embora a cultura não possa tudo, a natureza é uma bela desculpa para sermos selvagens. Também não enjeito que uma formiga avarenta possa ter que pagar imposto para uma cigarra que proporcionou em tempo quente um bem social, tocando e cantando para toda a comunidade dos bichos. O problema é que a verosimilhança, a credibilidade, o efeito de fábula, se perde com a pluralidade das versões. O que curiosamente parecia não ocorrer com a pluralidade de mitos em torno das mesmas personagens e estórias, na Antiguidade clássica. Enigma a ponderar. Em contrapartida, contrariando esta apreensão de “fim das narrativas”, há sinais de que o mundo político e empresarial, mesmo o próprio universo militar, cada vez mais fazem apelo ao contar de estórias (storytelling), como formas de criar realidades de substituição, biografias de marketing, “factos políticos”, e marcas que são, mais que produtos, mais que logotipos, estórias que se vendem e se compram. Devemos reflectir sobre o espelho mágico do nosso tempo, e o perigo de a política, que deveria ser direcção, ceder a puro reflexo da massa egoísta e comodista, mesmo quando se veste da sedução das estórias que a massa quer ouvir. Ora para tudo há um bom e um mau uso possíveis. Se os contadores de estórias das grandes campanhas nos querem impingir produtos (e entre eles candidatos), não poderemos nós, não digo apenas “encarnar” livros (como em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury), mas, mais ainda, passar a contar as nossas estórias? Contar estórias é preciso. Questão de sobrevivência. Já o sabia Sherazade.
pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 17-07-2008

1 comentário:

R. da Cunha disse...

Mas alguém precisa, hoje, de saber quem foi Édipo, Electra ou Jasão? E o Daniel de que fala, não era um jogador de futebol? Formigas, conheço, mas cigarras, no feminino, nunca ouvi falar.
Sherazade cheira-me a qualquer coisa de árabe, mas não localizo bem. Terá a ver alguma coisa com as Mil e Uma Noites, de que já ouvi falar?
Parece que, dantes, as avós contavam estórias, como a do Capuchinho Vermelho, a Branca de Neve, o Gato da Botas e outras, mas devia ser uma seca. É mais divertido vê-las na TV.
Mudam-se os tempos...e perdemos
alguma coisa, muito, diria.