sábado, 12 de julho de 2008

Imperialismos mentais

Um mundo visto só de um ponto de mira é pobre, feio e mau. Além de cometer um enorme erro de análise, acarreta um sem-número de consequências nefastas, e normalmente totalitárias. Tem-se falado do espectáculo do mundo, e comparado a vida a um teatro. Ao ponto de, no leito de morte, o Imperador Augusto ter ordenado que o aplaudissem. Mas a analogia entre teatro e vida não é grave. Dizer que a vida é romance também não acarreta qualquer prejuízo social. Este tipo de artes (teatro, cinema, literatura) são narrativas, contam estórias (em princípio), e por isso são as mais aptas a identificar-se, sem dano, com a vida. Há ciências e racionalidades que têm que fazer, e felizmente não tentam comandar tudo. Medicina, Engenharia, Música, Química, Pintura... têm tantos problemas concretos da sua especialização, que raramente se metem em seara alheia. Os respectivos cultores podem ter as atitudes sociais e políticas que quiserem. Mas, como disciplinas, aquelas são normalmente discretas. Por vezes, há metáforas que as convocam. Mas só metáforas: falar de “engenharia da alma” não é lisonjeiro para alguns. Já usar “medicina da cultura”, para designar o Direito, é simultaneamente fórmula amiga de médicos e juristas. A Sociologia já foi chamada “física social”: imagem um tanto mecânica, reveladora do positivismo dos seus criadores. E quando se fala em “química” para afinidades electivas ou se designa a culinária por “farmácia” tudo isso é ainda benévolo, inócuo, e até, por vezes, poético. Problema é quando uma disciplina ou uma forma mental, quer impor aos outros o seu leito de Procusta: esticando ou encolhendo os demais de forma a caberem na sua utopia imperialista, ditadura da sua mentalidade. Temos de distinguir nas influências epistémicas dois tipos. Por um lado, há historicamente, as disciplinas paradigmáticas. As quais, pela sua centralidade teórica, pelo prestígio dos seus cultores, pela fecundidade das suas metáforas, pela utilidade dos seus instrumentos, mesmo fora da sua área, exportaram racionalidades. Os dois grandes exemplos dessa exportação são a Retórica e o Direito. A Retórica (não confundir com a simples oratória) é uma ordem do pensamento, além de arte e ciência de discurso e persuasão. Ela vigorou, como estruturadora do pensar e do expor, durante séculos. E hoje volta.O Direito, com virtualidades semelhantes, até pelo seu carácter dialéctico, até há pouco ainda era a grande base comum do pensamento culto. Como observou o filósofo das ciências Michel Serres, o Direito influenciou a própria Geometria. E até as incógnitas da Álgebra (x, y, z) seriam traduções dos sujeitos hipotéticos dos casos práticos jurídicos: Titius, Caius, Sempronius, ou possíveis herdeiros em partilhas muçulmanas.Se a Retórica e o Direito moldaram o pensamento culto, nem uma nem o outro quiseram impor as suas categorias às demais realidades. O Direito ou a Retórica não servem para resolver equações, curar doentes, ou construir pontes. E sabem-no.Coisa diferente são os grandes imperialismos disciplinares: o primeiro, de sentido sobretudo marxista-leninista (mas não só) foi o historicismo. Como na filosofia escatológica de Marx a História caminharia inevitavelmente para o comunismo, deificou-se a História. Subordinada, porém, à inevitabilidade desse triunfo... Karl Popper foi dos que procuraram demolir essa mística unilateral. Mas a própria História se encarregaria de provar que não caminha para lado nenhum, inevitavelmente.Hoje conhecemos um outro unilateralismo, perigosíssimo. E de sinal ideológico contrário: a “teologia do mercado” é sinal de um economicismo sufocante de todas as demais racionalidades. Tudo é tratado na perspectiva do mercado, da oferta e da procura, da escassez ou raridade, das decisões dos consumidores e das empresas. Grave erro, apesar do ar de pomposa ou óbvia evidência. Pois nem tudo é dinheiro. Ver as religiões (e as igrejas), as forças armadas, ou a educação (e especialmente a Universidade) como se fossem relações entre meros clientes e fornecedores de bens e serviços é catastrófico. E tratar Política, Direito e até Amor como se fossem inputs e outputs da caixa negra dos negócios é ignorar completamente o sentido e natureza das coisas. Tal como com a mística historicista, a economicista virá naturalmente a ser pr completo desacreditada. Entretanto, pagamos todos o alto preço da moda. Numa declaração de amor, ter-se-ia de apresentar um gráfico de curvas de indiferença?
pfc in "O Primeiro de Janeiro" de 03-07-2008

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